Já volto III
es são descritas (quando são descritas) como dificuldades não técnicas,
ou seja, como dificuldades que não podem fazer parte de nenhum programa de
instrução e cuja transmissibilidade não depende, naturalmente, de nenhum
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instrutor. Nestas alturas, os menos acanhados gostam de referir-se
(desacanhadamente) à faculdade de entender aquilo que não tem compêndio
como um «dom do entendimento» 1
. Seja como for, abençoados ou não por estes
dons, os pacientes mais modestos dão lugar ao espanto (o comportamento que
uns dizem ser o início mais genuíno de todo o conhecimento 2
), enquanto os
menos modestos cedem terreno a uma obra de arte. Se fosse ainda fosse
possível arriscar uma caracterização do comportamento dos segundos seria o
qualquer coisa como isto: o exercício de uma actividade que faz daquilo que não
está abrigado num conceito a resolução de uma dificuldade.
4. Antes de prosseguir, gostaria, no entanto, de sublinhar que não pretendo
insinuar que estas dificuldades, bem ou mal resolvidas, sejam muito, muito
importantes. Quero sim dizer, pelo contrário, que o importante é conseguir olhar
para o facto admirável de existirem coisas muito, muito difíceis de explicar. Este
trabalho não é portanto para ser lido como um elogio à dificuldade, escolho onde
certos especialistas do conhecimento gostam de esconder a pluma da sua
erudição e os artistas de exibir a sua vaidade.
[ii]
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1. Como tentei fazer notar no início, neste trabalho deverá ser entendido o
seguinte: onde há careta, há dificuldade, onde há dificuldade não há nem
definição, nem gravura, nem lição. Careta é aqui tomado como toda e qualquer
expressão de um limite explicativo e conceptual e não deve ser tomado, por isso,
como mera curiosidade reservada à ciência fisionómica. Dessa expressão do
limite, não é nem o seu recorte, nem a sua forma, nem tão pouco a sua evolução
que me interessam, mas a sua operacionalidade ou, por outras palavras, a sua
capacidade de se deixar substituir por sinais alternativos, entre os quais se
incluem, naturalmente entres outros sinais, as caretas.
Sabemos, no entanto, que a expressão da careta não nos leva a quase lado
nenhum se o nosso propósito for fazer-nos entender sem equívocos quer seja no
seio de uma comunidade, quer seja diante de um determinado interlocutor. Estou
sobretudo a referir-me àquelas situações limite em que a delicada missão de nos
fazer entender não pode prescindir de um aliado fidedigno e mais formal do que
um bocejo, ou um gesto. Por exemplo, quando somos ouvidos como testemunhas
num tribunal cívico, quando representamos uma bancada parlamentar, quando
somos chamados a prestar contas em certas e muito especiais operações
contabilísiticas.
No entanto, e apesar do fraco peso institucional que têm determinadas
manifestações, todos nós possuímos, ou parecemos possuir, a presunção de que
somos infalíveis, lestos e hábeis em saber tomar o lugar do que ficou por dizer
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pela expressão correlata, sem necessidade de entrar em grandes escrutínios
analíticos. Ora é esta faculdade, diria intuitiva, de ver correlações que tomam o
lugar de signos não expressos, sem que a manutenção do entendimento dependa
dessa expressão e sem que o sinal correlato estabeleça com eles uma relação
sugestiva, o principal tema deste trabalho 3
.
[iii]
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1. Para todos aqueles que pensam que nada disto ocupa a cabeça das
pessoas que se interessam por arte ou literatura, gostaria de começar por dizer
que nada do que supostamente se passa na arte ou na literatura tem alguma
coisa a ver com pedidos de autorização expressa para ocupar certas coisas com
outras coisas, ou para tomar certos lugares por outros lugares. Seria caso para
dizer que nas discussões acerca de arte não existem taxas de aluguer talvez
porque a arte não seja um senhorio exigente, nem as discussões inquilinos
obedientes e sejam por isso impossíveis as acções de despejo. A leitura normal,
por exemplo, não se processa com um dicionário à ilharga, nem o leitor está num
enclave cercado de um batalhão de autoridades. Não há semáforos na leitura,
nem acessos de circulação livre e condicionada, e mesmo aquilo que mais
parecido podia haver com isso, a pontuação, adquiriu, desde há um tempo para
cá, um aspecto significativamente nómada. Actualmente, nada há na leitura que
seja parecido com uma autoridade, nem mesmo, e se calhar sobretudo, quando
utilizamos um instrumento como o da citação, ou quando fazemos uso de uma
assinatura, ou mesmo quando a experimentamos em regime de anonimato.
[iv]
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1. Se a minha pontaria descritiva em iii-1 não falha, como se explicaria então
que na leitura haja processos semelhantes aos da troca directa, do género, ‘eu
dou-te a minha, tu dás-me a tua’? Que sentido tem este comércio ? Como é que
sabemos que não trocámos gato por lebre e não enganámos o parceiro da troca?
Como pode então existir uma crítica da leitura sem caretas, ou, por outras
palavras, como é que a crítica da leitura se pôde institucionalizar numa linguagem
tornando o seu objecto em objecto portátil e simultaneamente em matéria de
tráfico fácil ?
O motivo principal da formulação de todas estas perguntas está,
directamente relacionado com um dos propósitos matriciais e mais ambiciosos do
ensino que é o de ser possível ensinar técnicas e conhecimentos com uma
margem mínima de segurança 4
. A primeira, e talvez a mais grave das suas
presunções é a de que existem objectos 5
sobre os quais é exercida a sua
influência 6
. Mas esta mesma formulação precisa de ser corrigida e é dessa
correcção que deverá surgir circunscrito o problema.
2. Em termos gerais, a questão que está aqui a ser levantada é, aproveitando
ainda a analogia tomada anteriormente, a seguinte: quando realizamos trocas
directas, em rigor, só estamos a realizar trocas directas. Por outras palavras,
quando se insinua que podemos trocar textos por textos, deveríamos estar a
insinuar uma coisa bem menos ambiciosa do que suporíamos à partida: a de que
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